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Queermuseu somos nós!, por Rita de Cássia Limberti

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Queermuseu somos nós!, por Rita de Cássia Limberti

28/09/2017 13h45 – Por: Rita de Cássia Pacheco Limberti *

O fechamento da exposição Queermuseu: Cartografias da Diferença na Arte Brasileira, em cartaz desde o dia 14 de agosto de 2017, no Santander Cultural, em Porto Alegre, sob acusações de “zoofilia”, “pedofilia” e “blasfêmia”, colocou um travo na garganta da liberdade de expressão e da manifestação artística. Obras notáveis, que deveriam atingir picos de debates e reflexões, foram tomadas como bodes expiatórios de uma concepção de mundo conservadora e moralista ultrarradical.

Não adiantou fechar a exposição, isto não impediu as pessoas de “saberem” as obras; mesmo que elas tivessem sido destruídas, continuariam a existir porque um objeto artístico expande seus significados para além de sua materialidade, inscrevendo seus sentidos no curso da História, no seio da Cultura, nos meandros da Ideologia, produzindo efeitos sutis ou impactantes, sempre indeléveis… Os efeitos de sentido de uma obra de arte prescindem da perenidade de seu objeto, haja vista as performances e as instalações… Astutamente, entretanto, devemos proceder à leitura de um subtexto que se tece nesse movimento truculento: a visibilidade que ele pleiteia sobre si mesmo. Assim, o ponto de nossa discussão não deve ser os autores da ação, mas sim sua ilegitimidade, seus desdobramentos, sobretudo em relação à democracia, à liberdade de expressão, à importância da Arte. Acendamos, pois, nossos próprios holofotes!

Embora o aspecto crítico seja inerente ao objeto, cabe destacar que esse conjunto de obras da Queermuseu colocou-se, do título à curadoria, passando por cada obra, com especial potência de criticidade. Cada um dos trabalhos, mapeados em torno da Diferença na Arte Brasileira pelo curador Gaudêncio Fidelis, desenha a cartografia de nossa condição e apresenta a vastidão do território existencial a ser contemplado em nosso tempo.

O título, Cartografia, não poderia ser mais apropriado, pois um mapa é uma representação do real; o que se tem nessa cartografia são representações de um mundo camuflado, não reconhecido, que engendra sua própria negação por ser o mundo das Diferenças. Dar visibilidade a elas é abrir uma ferida bem mais profunda do que aquelas abertas pelo seu combate, o qual sutilmente se engendra nas práticas sociais até tornar-se o óbvio inquestionável. Essa é uma das fontes mais fecundas da ferrenha resistência à contemplação desses abismos e áridos desertos de nosso território… A Arte são as pontes… ela pode fazer com que os homens transponham seus abismos e encontrem seus oásis…

O desconforto provocado pelas obras deve-se a uma forma furtiva de identificação, de reconhecimento, naquela imagem espelhada e inegável, ainda que o observador coloque-se à margem ou frontalmente contra a coisa representada. O incômodo é reconhecê-la, admiti-la. A pedofilia, a zoofilia, as práticas sexuais não convencionais, a condição circunstancial do sagrado e de todos os dogmas, tudo isso existe, mas não pode ser tomado em sua nudez semântica, paradoxalmente pura, não pode ser flagrado sem o véu hipócrita das injunções políticas, ideológicas, religiosas, culturais. Curiosamente, o observador incomodado desvia seus motivos para o conceito de arte, de obra de arte, de moralidade… talvez porque ele não consiga desvincular aquilo que olha daquilo que lhe foi determinado ver.

A Arte visual é a arte do espetáculo; atrai o olhar, mas não é necessariamente o belo. Atraem também o olhar as misérias, o sátiro, o grotesco; porém, não se pode perder de vista que todos esses atributos “espetaculares” se estabelecem não na observação da coisa em si, mas a partir dos revestimentos semânticos que o ato sofre no interior da cultura.

Espetáculo insólito de nossa condição humana(?), a Queermuseu aos poucos vai perdendo o papel de foco principal… Na verdade, o espetáculo possui outros dois grandes holofotes que disputam a cena: os atores políticos, caprichando na atuação para se tornarem estrelas, e a população de um país ansiosa por um bom diretor. Na falta deste, parte daquela, ansiosa e míope, improvisa um coro de arremedo.
Assim como nos trabalhos da exposição, podemos ver nesse palco um espetáculo dantesco e repulsivo, mas a Arte, essa diabólica e divina linguagem, nunca perde a oportunidade de dar uma lição de realidade!

  • Professora de Semiótica/Análise do Discurso. PPG Mestrado em Letras. Faculdade de Comunicação, Artes e Letras (Facale). Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD). [email protected]

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