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quinta-feira, 28 de março de 2024

Memórias daquilo que fui, do que sou e do que serei, por Maria Isabel Pereira

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Memórias daquilo que fui, do que sou e do que serei, por Maria Isabel Pereira Lúcio de Lima

19/10/2017 15h02 – Por: Maria Isabel Pereira Lúcio de Lima

Aqui estou, imerso nas minhas lembranças de que testemunhei. Custo a acreditar em que algum tempo longínquo ouvira outras vozes, sentira outros cheiros. Exalava no ar a pureza da brisa selvagem. Os gritos eufóricos retumbavam no ar, despertando-me do meu devaneio. Não eram perturbadores. Eram meus bravos guerreiros, filhos do meu chão, a caçar suas presas, rasgando o ar com arcos e flechas. Pés descalços, desnudos e destemidos davam vida a minha vastidão.

Os meus dias seguiam calmos e serenos, até o momento em que pés estranhos apalparam o meu chão. De onde vieram? Chegaram pelas águas, rasgando-as com suas aves flutuantes. Ao vê-los, percebi nos olhares uma pretensão que me gelou a alma. Respiravam cobiça.

Enfeiticei-os com meu império. Perceberam a exuberância do meu solo. A imensidão dos meus verdes campos em que os olhos não alcançavam o seu fim. Ah! E os meus mananciais com águas cristalinas e puras com variadas espécies de peixe. Deslumbraram-se com a grandeza da minha fauna e flora e a dádiva de ter como filho um santuário de beleza singular, rica e única. Para mim, Perfeição; aos outros, Pantanal. Neste moravam filhos natos da terra com suas crenças, costumes e valores.

Testemunhei muitas batalhas. Estas, nos tempos outrora, eram disputas de força e bravura. A luta era pelo domínio de quem tinham os melhores espíritos de combate e, o vencedor escravizava o vencido.

O poder dos espíritos Caracará, Pacu e de outros animais e aves que se fundiam aos meus filhos seriam testados na luta pela vida. Explica-se o sentimento de medo de que sentira pelo desconhecido. Meus fiéis guerreiros resistiram a todos os novos desbravadores que chegaram, eliminando-os com heroísmo e avidez.
Porém, a bravura fora vencida, perdeu-se a inocência. Vi o crepúsculo ao meio-dia. Minhas águas límpidas, feridas e manchadas agonizavam com o murmurar dos bramidos “Filhos teus”.

Sentira pelos meus mananciais, a cada chegada de forasteiros, uma ira profunda. Como foram tão pérfidos? Por que não os tragou em seus sumidouros?

Sem respostas, continuei a recebê-los com antipatia. Com o tempo, vieram Garcia, Ayolas, Martinez, Tavares, Prados, Camponês, Francisco Lopes, Leal Sobrinho, Gonçalves Barbosa, Os Pereira da Rosa e o movimento migratório continuava a ocupar meus campos.

Demarcaram-me em linhas invisíveis, vi disputas em meu nome. Colônias serem demolidas e Fortes conquistados ou arrasados. Aprisionaram os que aqui vieram buscar riquezas ou sonhos. Minhas águas foram divididas e censuradas. Língua de fogo flamejava o meu chão, maculando o que antes fora ilibado. O que existira, virou cinzas.

O escritor, testemunha, narra às histórias, levando a outras narrativas aventureiras. O poeta foi inspirado e discorreu acerca do que vira.

Os vencedores ao retornar as suas províncias, relatavam a abundância das minhas terras ditas “devolutas de vacaria”. Fizeram-me conhecido, chegaram como formigas, dominando o meu solo. Ouvira, agora, sons das vozes ora arrastadas, ora cantadas ou engolidas. Confesso que, em meio ao meu desconforto, deleitava-me com tantas descobertas.

Meus cerrados cobertos com extensa vegetação, transformados em cercados de criação de gado que no amanhã seria uma das grandes economias dos que aqui chegaram. As minhas terras férteis foram reocupadas. Semearam grãos e raízes, tornando-me absoluto em produção.

Novamente redesenharam-me. Temi ouvir o som que quisera esquecer. Cheiro de tragédia pairava no ar. Mas, o bom negociador reiterou a paz.

Laranjeira, esse encontrou em meus ervais nativos o chafariz da exploração e da riqueza. O progresso transformou trilhas de terras em ferrovias. A “Ferro Noroeste” trouxe o progresso. Meus ervais eram extraídos e exportados para outras terras. Expandiram minhas campinas. As malocas se espalhavam onde em meu paraíso crescia as flores.

Riquezas atraem poderes. Estes com calibre 44. Observei homens serem armados para defender posses e o poder do mando. Confesso que se tivesse asas, pediria ao vento a me transportar para qualquer lugar, antes desovaria o que em mim estava depositado.

O poderio divisionário acentuava-se nas lutas armadas. Novamente, mancharam o meu chão. Sonhos perdidos escoavam em nome do progresso. Este, apesar dos conflitos, com grande desenvolvimento econômico.

Vi marchas surgirem a ocupar meus recintos. O dominado voltara a ter força. Era preciso podá-las. Novas colônias surgiram, denominadas “CAND”. Acolhi outros filhos da esperança e do sonho. Uns desses, minhas águas levaram ao romperem a barreira que os isolavam dos dois lados do meu rio. Mas nada se iguala ao extermínio dos meus bravos guerreiros em terras “latifundistas”.

Entre ideais, lutas, progresso e rasuras no papel, em sigilo, desmembraram-me. Nomearam-me Mato Grosso do Sul. Ouvi gritos eufóricos, clareavam o meu céu. Para abrilhantar esse momento, o profeta apareceu.

Histórias passaram a ser construídas e desconstruídas. Meu orgulho “Perfeição” sendo degradado. Gritava a dor do incapaz. Não ouviam. O explorar era contagiante, e muitos chegaram com a mesma fúria que vira antes. Agora, outras armas e novas atitudes.

Protegeram-me em nome da lei. A neblina da incerteza do que viria foi se dissipando, e meu espaço ocupado com novos costumes, crenças e culturas. Estes se misturaram e representam o que somos hodiernamente.

O Meu habitat natural, fora transformado para atender o que era necessário à sobrevivência dos meus filhos adotivos. Estes se multiplicavam com a rapidez de um raio. Amava-os à medida que os conhecia. Herdei novos costumes e valores. O cozinhar exalava outros cheiros e sabores. Era de dar água na boca. Um vinha com nome de tropa: “Feijão tropeiro”.

Na fuga para a liberdade, representada na canção de independência, “Paranauê”, conheci o gingado da capoeira.

Em meio à nostalgia do passado, acordo em uma roda de tereré, a bebida mais ilustre vinda dos meus ervais. Este confidente, amigo e conselheiro. Observo ao meu redor e percebo a beleza dos que me escolheram. Sorrisos soltos a bailar os mais diversos ritmos.

Tenho filhos ilustres que cantam, narram e reproduzem minhas terras, meus natos filhos, minha história e minhas águas serenas. Estas levam descobertas, aventuras, progresso, sonhos e amores. Afinal: “As águas são a epifania da criação”, como diz o poeta.

Passear pelas minhas terras é uma aventura inenarrável, dizem os aventureiros que cruzam meus campos. Alguns desses visitam meus nativos, alojados em suas “ocas”, querendo conhecer a cultura e os costumes primitivos deles.

Na encenação, às vezes, vejo o flamejar dos meus ancestrais em um ou outro olhar. Quero gritar, acordem… pelos meus ascendentes que dormem em terras reconquistadas. Reedifique os meus campos. Reconstrua a beleza natural perdida. Que as cicatrizes e as emoções os inspirem a reencontrar o espírito de bravura esquecido. Vivam à maneira de seus costumes e de suas crenças.

Verei, outra vez, o avivar dos meus sonhos com gritos, não perturbadores, mas cheio de vida que renasce a cada desperta

  • Maria Isabel Pereira Lúcio de Lima é professora

Maria Isabel Pereira Lúcio de Lima

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