08/02/2014 07h00
Ante as graves consequências produzidas pela violência sexual, a garantia dos direitos das vítimas a um atendimento médico e psicológico adequado e acesso à Justiça e aos serviços oferecidos pelo Estado é essencial.
Nesse sentido, experiências de defensores públicos que atuam na garantia dos direitos humanos, sexuais e reprodutivos das mulheres, ou realizam parcerias com instituições que trabalham com vítimas de violência sexual, mostram caminhos para garantir todo o apoio necessário para a recuperação dessas mulheres.
É o caso da defensora pública Fernanda Miller da Cunha Almeida, que em 2010 obteve uma decisão judicial para interrupção de gestação decorrente de estupro em Pelotas (RS), ao prestar assistência jurídica a uma jovem de 18 anos, que vinha sendo vítima de violência sexual pelo padrasto desde os nove.
O caso foi encaminhado pelo Núcleo de Atenção à Criança e ao Adolescente, uma vez que, apesar de a jovem ter procurado diversos estabelecimentos públicos de saúde, todos se recusaram a interromper a gestação.
Embora a lei permita a interrupção da gravidez decorrente de estupro e diversas normas e tratados definam que o procedimento deve ser feito de modo seguro, na prática, muitas vezes, a vítima tem problemas para acessar este direito.
Até o ano passado, a defensora estima ter recebido entre dois a três casos semelhantes a este por ano.
“Em que pese a existência da lei retirando a antijuridicidade do aborto nesses casos, até o médico aceitar fazer o procedimento, sem uma ordem judicial que o determine a fazer isso, há uma grande distância”, avalia a defensora.
“Apesar dos avanços no campo dos direitos das mulheres, quando se fala em interrupção da gestação – por violência sexual ou mesmo nos casos em que o feto não pode sobreviver, como na anencefalia – ainda existe uma pressão muito grande da sociedade”, explica.
Ela conta que no caso de 2010, por exemplo, quando a situação da vítima se tornou conhecida pela comunidade local, ela teve sua casa apedrejada, foi ameaçada de excomunhão da igreja que frequentava e a família do agressor ainda tentou retirar a guarda dos dois filhos, que ela já havia tido em consequencia dos abusos.
“Esta jovem não escolheu quando iniciar sua vida sexual, com qual parceiro, se queria ou não ser mãe, com que idade queria ser mãe – tudo isso lhe foi negado com a violência que sofreu.
A interrupção da terceira gestação foi a primeira opção da vida dela nesse sentido”, frisa.
A ação para obter a interrupção da gestação foi fundamentada no artigo 128 do Código Penal, que prevê a antijuridicidade da conduta nesse caso – ou seja, a mulher que opta por interromper a gestação decorrente de estupro não comete um crime.
Além disso, foi embasada no Programa de Ação da Conferência Internacional de População e Desenvolvimento – do qual o Brasil é signatário – realizada no Cairo, em 1994.
Também, em orientações do Conselho Federal de Medicina, da Organização Mundial da Saúde, bem como em normas do Ministério da Saúde, que apontam a interrupção da gestação como parte do tratamento do agravo resultante de violência sexual por indicação ética e humanitária.
Com a Lei nº 12.845, promulgada em agosto deste ano, os direitos das mulheres a um atendimento de qualidade e humanizado no Sistema de Saúde foram reiterados e transformados em obrigação para todo o SUS (Sistema Único de Saúde).
A vítima de violência sexual tem direito a um atendimento de emergência em toda a rede, que deve realizar os exames, diagnóstico e tratamento das lesões físicas, além de ministrar as medicações para profilaxia de doenças sexualmente transmissíveis e a contracepção de emergência para evitar a gestação.
Quando a violência sexual resulta em gravidez, a vítima tem o direito ao aborto previsto por lei, já que não há punição, segundo o Código Penal, e é obrigação do sistema público de saúde garantir as condições objetivas para que a gestação seja interrompida ocorra de forma segura, conforme a Portaria nº 528/2013, do Ministério da Saúde.
Ainda, segundo normas técnicas do MS, não é preciso ter feito o boletim de ocorrência ou a denúncia para solicitar o procedimento.
Além disso, a mulher tem direito ao amparo psicológico e social – já oferecido em alguns hospitais de referência e que, com a nova legislação, deve estar presente em todas as unidades integrantes da rede do SUS que atendam as vítimas de violência sexual.
Se a violência acontecer no percurso para o trabalho ou volta para a casa, a trabalhadora tem o direito de fazer a Comunicação de Acidente de Trabalho (CAT).
Também pode solicitar benefícios junto ao INSS caso os danos – físicos ou psicológicos – gerados pela violência a impeçam de trabalhar.
Se foi cometida por um conhecido da vítima – alguém com quem manteve ou mantém relação íntima de afeto ou de convivência – a violência sexual pode ser enquadrada na Lei Maria da Penha, que prevê também uma série de direitos, como a medida protetiva de urgência e o abrigamento, quando necessário, na área criminal, e demandas como solicitar pensão alimentícia e a guarda dos filhos, na área civil.
De acordo com a defensora pública Carolina de Araújo Santos, titular do 5º DP de Direitos Humanos com atuação na Vara de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher na Bahia, cada caso de violência sexual tem suas nuances e é preciso adaptar a atuação do operador do Direito às necessidades da situação em que a mulher vive.
Caso a mulher encontre resistência ou sofra qualquer forma de discriminação nos serviços de Saúde ou de Segurança Pública, ela pode recorrer à Defensoria ou mesmo ao Ministério Público (MP) para fazer valer os seus direitos.
Na Bahia, por exemplo, o Núcleo de Defesa da Mulher da Defensoria Pública (Nudem) realiza os encaminhamentos necessários, orientando a mulher a recorrer aos serviços da rede de proteção que forem adequados ao seu caso.
O Nudem também acompanha a ação penal para a responsabilização do agressor, verificando se há irregularidades processuais a serem sanadas, acompanhando e orientando as assistidas em audiências e até mesmo atuando como assistente de acusação junto ao MP, conforme enumera a defensora Carolina de Araújo Santos.
“Basta que ela vá à delegacia de polícia, dê a queixa e, com o boletim de ocorrência em mãos, se dirija ao Nudem, onde será atendida por um defensor ou defensora que, de pronto, requererá judicialmente o afastamento do agressor do lar, a proibição de contato do agressor com a agredida, entre outras tantas providências elencadas na Lei Maria da Penha, podendo, ademais, serem pleiteadas medidas diversas, não constantes da lei, conforme seja a exigência do caso”, explica a defensora.
Além disso, ela lembra que a vítima receberá toda assistência e orientação jurídica acerca de seus direitos e poderá também ser atendida por uma psicóloga e/ou assistente social.
“Esses profissionais prestarão o auxílio na árdua tarefa de resgate de seu poder pessoal, a fim de que tenha suporte emocional para, querendo, dar continuidade à ação que será ou que já foi proposta perante a Justiça”, complementa.
Em Brasília, onde a Defensoria Pública do Distrito Federal (DPDF) assinou um termo de cooperação com o Conselho Nacional do Sesi (Serviço Social da Indústria), no âmbito da Rede de Enfrentamento à Violência Sexual no DF com objetivo de melhorar o atendimento às vítimas na região.
Pela parceria, os defensores públicos passaram a prestar assistência jurídica gratuita aos participantes do Programa ViraVida – dirigido a jovens e adolescentes entre 16 e 21 anos – realizado pelo Conselho Nacional do Sesi em 23 cidades brasileiras.
Os participantes do projeto em Brasília foram incluídos ainda nos projetos sociais promovidos pelo Departamento de Atividade Psicossocial (DAP) da DPDF – entre eles o Grupo de Apoio às Mulheres Vítimas de Violência.
Assim, as adolescentes que participam do ViraVida no DF passaram a contar com as atividades oferecidas pela Defensoria no atendimento em defesa da mulher, como a integração com a rede de apoio, a orientação jurídica em situação de violência de gênero, o pedido de medidas protetivas de urgência e o acompanhamento das vítimas em audiências, entre outros.
Além disso, a partir da aproximação com os adolescentes que participam do projeto do Sesi, a Defensoria espera conhecer melhor as necessidades das vítimas e utilizar esse conhecimento nos demais atendimentos prestados à sociedade.
“O ViraVida promove o resgate de jovens que sofreram algum tipo de violência ou abuso sexual.
Quando nos aproximamos e trabalhamos com centenas de jovens, temos condições de mobilizar e criar canais e serviços específicos, diminuindo ou retirando a burocracia e facilitando o acesso a serviços que a Defensoria presta.
Assim, passamos a conhecer os detalhes e especificidades que merecem uma atenção especial”, explica o defensor Evenin Ávila, diretor da Escola da Defensoria Pública do DF, que promove um curso de educação em direitos para os participantes da iniciativa.
“Nossa proposta é articular os diferentes núcleos da Defensoria – como a Escola, o Núcleo de Defesa da Mulher, da Saúde, da Infância e Juventude etc. – para efetivar o serviço mais completo possível para o resgate da dignidade humana”, destaca o defensor.(compromissoeatitude.org.br)