A propósito da nossa Cidade Universitária, eis algumas lembranças do en-sino superior, através da grande figura que era o professor José Pereira Lins.
20/12/2018 07h25 - Por: Kiyoshi Rachi*
A propósito da nossa Cidade Universitária, eis algumas lembranças do en-sino superior, através da grande figura que era o professor José Pereira Lins.
Cheguei aqui, na região, em fevereiro de 1970. Havia muita poeira, muito barro e muito nordestino. Antes da monocultura da soja, como dizia o padre An-dré, a Colônia Agrícola era muito alegre, com muita gente indo e vindo. Era do cotidiano, quando se reclamava de algo, ouvir, jocosamente, do nordestino: "E não tá bom, não?" Havia muito otimismo.
Veio o Centro Pedagógico de Dourados, parte da, então, Universidade Es-tadual de Mato Grosso. Era início de abril de 71, professor Lins fazia parte do cor-po docente e tinha recém completado 50 anos. Os professores pioneiros eram Ir. Josephine Cloppenburg (Inglês), Izaura Higa (Português), Emilia Alves (Didáti-ca),Mario Geraldini (Geografia), eu (Cultura Brasileira), José Pereira Lins (La-tim),Nadyr Martins (Sociologia) e Telma Valle (Literatura).
Lins costumava vestir terno, gravata e o paletó sempre aberto. Certa vez,quando aqui nemhavia semáforo, ele me disse rindo: "Brasileiro não tem me-do da lei, tem medo é do guarda." Noutra ocasião, eu umjovem querendo impres-sionar, disse que muita gente fala e fala e não diz nada, falam como se soltas-semflattus vocis (gases intestinais). Juro que não estava me referindo a ele.
Como proprietário e diretor do Colégio Osvaldo Cruz, desde 1954, ele lida-va com alunos adolescentes e adultos. Ganhou o apelido de Quati. No CPD, eu soube que, tendo um aluno perturbado o andamento de sua aula, Lins atirou um pedaço de giz no dito cujo. A memória não ajuda muito, mas acho que era giz mesmo e não apagador. Por graça, não acertou o alvo. Aula de Latim, já pensa-ram? Numa terra onde ainda corriam estórias de assassinatos violentoscontadas em português mesmo.
Ainda em meados da década de 70, muito solícito, ele emprestava as de-pendências de sua escola para as nossas reuniões da então Associação Doura-dense de Professores. Numa viagem, no extinto restaurante Vitor, na rodovia para Prudente, quando eu tomava uma caracu, ele curioso pediu um gole. O pecadilho não valeu a pena: fez careta de quem não gostou. Ele era da igreja Batista.
Era dono de profunda formação humanista clássica. Sim, seus olhos, que brotavam de seu rosto moreno de paraibano castigado pelo sol, piscavam huma-nidades. Numa visita minha, ele me mostrou seus livros preferidos, alguns em que ele era o próprio biografado. Já habituados, os livros prontamente obedeciam aos movimentos de suas mãos.
O que ficou na minha memória foi esse aconchego do professor Lins com os livros e através destes, intimidade com o espírito humano. Livros que ele tinha aos montes, em estantes em diferentes cômodos, nos corredores e cantos perdi-dos ou esquecidos. Hoje, parte do acervo da Universidade da Grande Dourados (UFGD).
Numa terra de muito barro e muita poeira, quando o pouco asfalto se con-fundia com o vermelho do chão batido, foi um achado trombar com um homem que tanto contrastava com esta paisagem.
No percurso dos anos, percebemos a efemeridade das coisas. Mas, o pal-pitar da vida sempre supera a inexorabilidade da morte. Com estas lembranças, carinhosamente, registro aqui minhas homenagens ao nosso professor Lins, falecido em 2011.
Desde 2005, temos a UFGD, dinamizando nossa cidade. As coisas não nascem do nada, nascem de alguma coisa. Prof. Lins e muitos outros fizeram parte dessa alguma coisa.